
A perda de uma voz única
O som do piano elétrico Wurlitzer que abre tantas canções do Supertramp ficou em silêncio. Rick Davies, cofundador, vocalista e pianista da banda britânica, morreu em 6 de setembro de 2025, aos 81 anos, em sua casa em East Hampton, Nova York. Ele lutava contra mieloma múltiplo, um tipo de câncer do sangue, havia mais de uma década.
Nascido em 1944, em Swindon, na Inglaterra, Davies cresceu ouvindo jazz, blues e rock’n’roll. Essa mistura virou assinatura. No palco e em estúdio, ele unia groove e precisão: mão direita cortante, mão esquerda firme, aquele timbre cortante do Wurlitzer segurando a base e empurrando as melodias para frente. Sua voz grave e cálida, às vezes rouca, contrapunha o timbre agudo de Roger Hodgson. Essa dobradinha definiu o DNA do Supertramp.
Fundada em 1969, a banda virou referência do rock progressivo de apelo popular, com arranjos cuidadosos, letras observadoras e refrães que grudam. Davies dividiu composições e vocais com Hodgson e cravou clássicos como Goodbye Stranger e The Logical Song. A química era clara: pianos elétricos e acústicos em primeiro plano, camadas de teclados, sax marcante e uma cozinha que não se perdia no virtuosismo.
O auge comercial veio com Breakfast in America (1979), número 1 nos Estados Unidos e no Canadá, vencedor de dois Grammys e mais de 18 milhões de cópias vendidas no mundo. Não foi por acaso. O disco equilibra complexidade e melodia, sem perder o balanço pop. É o tipo de álbum que atravessa décadas: toca no rádio, em playlists, em bares. Vira memória afetiva.
Antes disso, o grupo já tinha pavimentado o caminho com álbuns que elevaram o sarrafo do rock setentista. A banda cresceu muito em palco, e os shows, cheios de dinâmica e mudanças de clima, ajudaram a criar uma base de fãs fiel. O carisma discreto de Davies fazia diferença: menos discurso, mais música. Ele deixava os teclados falarem.
Em 1983, a parceria fundadora se desfez com a saída de Hodgson para a carreira solo. Davies manteve o Supertramp ativo por alguns anos, levando o som para um registro mais encorpado, e encerrou a primeira fase em 1988. Em 1996, reativou a banda, que voltou a gravar e rodar o mundo. As turnês seguiram até os anos 2000 e a última apresentação do grupo aconteceu em Madrid, em 2012.
Em 2015, veio o golpe mais duro: o diagnóstico de mieloma múltiplo obrigou a cancelar a turnê daquele ano. O mieloma ataca as células produtoras de anticorpos na medula óssea, podendo causar dores ósseas, anemia e infecções. É um câncer tratável, com terapias que evoluíram bastante na última década, mas que exige maratona de exames, medicação e, em muitos casos, transplante. Davies enfrentou o tratamento com resiliência e seguiu tocando quando conseguia.
Ele também cultivou uma vida longe dos holofotes. Casado desde 1977 com Sue, parceira de cinco décadas, teve nela um pilar pessoal e profissional. Sue assumiu a gestão do Supertramp em 1984, cuidando das rotas da banda, das negociações e dos bastidores. Davies também era dono da Rick Davies Productions, detentora dos direitos das gravações do grupo, o que ajudou a preservar o catálogo e a narrativa artística do Supertramp.
Nos últimos anos, mesmo com a saúde pedindo freio, a música não ficou de lado. Com amigos da cidade natal, ele tocou em um grupo chamado Ricky and the Rockets — encontros informais, repertório solto, prazer puro de tocar. Era a volta às origens: amigos, instrumentos e o impulso simples que o levou a montar uma banda em 1969.
Como o Supertramp virou trilha de gerações
A força do Supertramp sempre esteve no contraste. A voz grave de Davies ancorava as canções, enquanto a de Hodgson levava as melodias lá para cima. Entre os dois, o Wurlitzer de Davies fazia a ponte: riffs curtos, batidas secas e acordes abertos que viraram marca registrada. Em estúdio, isso se traduzia em arranjos claros, com espaço para as linhas de piano respirarem, sem atropelar baixo, bateria e sopros.
Essa construção ajudou a banda a dialogar com públicos diferentes. Quem vinha do rock progressivo encontrava complexidade e mudanças de andamento. Quem preferia canções diretas achava refrães que funcionam na primeira audição. E os teclados de Davies costuravam tudo: do clima sombrio de certas faixas à euforia de outras, sempre com intenção rítmica, nunca como enfeite.
Não dá para falar da trajetória sem citar a virada de 1979. Breakfast in America condensou a estética do grupo e virou um fenômeno global. O sucesso abriu portas, mas também criou uma sombra difícil de superar. Davies lidou com isso do jeito dele: trabalho e foco na música. Sem alarde, ele manteve a banda em estrada enquanto foi possível, entregando shows bem ajustados, com repertório que equilibrava favoritos de rádio e mergulhos mais profundos do catálogo.
Mesmo fora dos palcos, sua assinatura seguiu ecoando. Os pianos elétricos voltaram à moda em diferentes ondas, e muitos artistas citam o Wurlitzer como timbre de referência justamente por causa do Supertramp. No estúdio, produtores buscam aquele ataque percussivo com leve saturação que Davies dominava. É influência que você ouve sem perceber, em gêneros que vão do indie ao pop adulto.
Além da técnica, havia a atitude. Davies nunca se vendeu como virtuose. Tocava para a canção. Sabia quando segurar, quando empurrar, quando deixar o silêncio trabalhar. Em uma banda conhecida por arranjos sofisticados, ele fazia o difícil: simplificar o suficiente para a música respirar e, ainda assim, manter a identidade intacta.
Em nota de tributo, a equipe do grupo ressaltou que a obra de Davies segue inspirando e que boas canções não morrem — continuam vivendo. Essa é a medida do legado: quando uma música atravessa gerações, muda o humor de um dia ruim, vira lembrança de uma viagem, um encontro, uma fase. O Supertramp fez isso muitas vezes.
Uma linha do tempo ajuda a visualizar o caminho que trouxe Davies até aqui:
- 1969 – Fundação do Supertramp por Rick Davies e Roger Hodgson, em Londres.
- Meados dos anos 1970 – Consolidação artística e crescimento em palco, com canções que misturam ambição e melodia.
- 1979 – Breakfast in America atinge o topo das paradas nos EUA e no Canadá, rende dois Grammys e vende mais de 18 milhões de cópias.
- 1983 – Saída de Hodgson; Davies segue liderando a banda.
- 1988 – Fim da primeira fase do Supertramp.
- 1996 – Retorno do grupo sob a batuta de Davies, com novas turnês.
- 2012 – Última apresentação da banda, em Madrid.
- 2015 – Diagnóstico de mieloma múltiplo força o cancelamento da turnê.
- 2025 – Morte de Rick Davies, aos 81 anos, em East Hampton, Nova York.
Para quem cresceu com o Supertramp, a notícia dói, mas a obra consola. É só apertar o play e reconhecer, nos primeiros segundos, aquele Wurlitzer inconfundível. O resto a gente sabe cantar de memória.